O Panorama: Jornal Literário e Instrutivo

 Aqui deixo um excerto do jornal "O Panorama: Jornal Literário e Instrutivo" que foi publicado de 5 de Setembro de 1846 a 25 de Dezembro de 1852.

Onde fala sobre a Vila de Terena, a qual foi escrita no dia 13 de Fevereiro de 1847.



A Vila de Terena


Na província do Alentejo e distrito administrativo de Évora, sete léguas a leste desta Cidade, e duas a Oeste da Vila de Redondo, está situada, em lugar elevado, a moderna Vila de Terena, cujo termo, que compreende seis léguas correndo de norte a sul, e duas contadas do nascente ao poente, abunda pão, gado e caça, e  acaba por um dos lados no ponto em que a ribeira do Lucefece mistura as suas águas com as do Guadiana. Quando o padre Carvalho escreveu a sua Corographia era terra de 350 fogos, e em 1839 contava 700 habitantes.
    Existiu em tempos remotos no seu termo um templo consagrado, dizem que pelos cartagineses, a Endovélico, divindade a que os celtiberos rendiam culto, e que parece ser o Cupido dos gregos e romanos. Muitas inscrições copiadas pelo cronista Fr. Antonio da Purificação de lapides que D. Theodosio, quinto duque de Bragança, fizera transladar para Vila Viçosa, atestam que não só Endovélico, mas também Proserpina e Marte, ali recebiam oferendas em paga dos milagres que a cega gentilidade lhes atribuía, sem que seja hoje possível saber se no mesmo templo, se em templos distintos porém próximos, em quanto o sacerdote da deusa do inferno lhe sacrificava a bezerra estéril, ou o do deus do amor, vestido de alvas roupas talares, que lhe deixavam contudo descobertas a aspadua e o braço esquerdo, abria o cordeiro com o direito, e com aquele lhe arrancava o coração e o lançava no fogo, o do cruento deus da guerra se aprestava talvez para derramar ante as aras de um nume detestável o sangue de guerreiros vencidos.
    Terena antiga, povoada por D. Gil Martins, que lhe deu foral em 1262, jazia numa baixa, entre o ribeiro do Alcaide e a ribeira de Lucefece. Por morte do conde D. Martim Gil, filho do fundador , vagou para a coroa, e el Rei D. Manuel lhe deu outro foral em 10 de outubro de 1514. Do seu castelo eram alcaides mores os condes da Ponte. Os maus ares que se respiravam no primitivo chão desta vila a foram despovoando, e obrigaram os habitantes a mudarem-na para o sitio onde ora se acha.
    Mas na igreja da primeira freguesia da invocação de Nossa Senhora da Boa nova, situada numa descida, ainda se conserva a pia de batismo, em reverencia á sua grande antiguidade. Este templo, como mostra o desenho dele, assemelha-se a um castelo: todo ele é guarnecido de ameias e feito de cantaria.
Os próprios telhados estão divididos em pequenas porções por uns carris, que serviriam provavelmente de facilitar aos defensores, no caso de ataque, acudirem aos sítios ameaçados e arrojarem do alto sobre o inimigo pedras, traves, matérias inflamadas, e os outros instrumentos usados na guerra antes da invenção da pólvora: a figura da igreja, cuja planta é uma cruz perfeita, ao mesmo tempo que devia incitar os cristãos a sacrificar as vidas em honra do símbolo da redenção do género humano, contribuía para ainda mais fortalecer este propugnáculo.
    Como quer que seja, o citado autor da Corographia dá por fundado deste celebre monumento a rainha D. Maria, mulher de D. Afonso II de Castela e filha do nosso rei D. Afonso IV, princesa de que o inimitável Luis de Camões imortalizou a formosura e descrição no preciso quadro em que a representou, banhada em lágrimas, implorando o auxilio paterno em prol do esposo prestes a perder a coroa, se, demorando-se-lhe o socorro dos intrépidos portugueses, não se pose-se cobro á insolência dos mouros, que vieram a ser desbaratados na famosa jornada do Salado em 1340.
    Sem pretendermos invalidar o testemunho do padre Carvalho, temos para nós a fundação do templo de Nossa Senhora da Boa Nova é de origem muito mais remota. Como podia esta igreja, a primeira paróquia da Vila de Terena, que já vimos ter sido povoada em 1262, ser edificada tanto tempo depois?
    Demais, no testamento da rainha D. Maria nenhuma disposição ou legado se encontra a favor dela, quando, segundo o costume então geralmente seguido, não é de crer se deslembrasse deste notável lugar sagrado, a ser feitura sua. Não será este templo uma das antiquíssimas paroquias acasteladas que a necessidade de constar ás correrias, primeiro dos árabes e depois dos castelhanos, obrigava a contruir nas terras da raia? A seu tempo averiguaremos isto.
    A igreja da Boa Nova, semelhante ao velho centenário que, durante o largo período da sua existência viu morrerem em redor de si ou deixaram a terra natal os companheiros da sua mocidade, acha-se hoje num quase ermo, onde o viajante, que se compras de contemplar as relíquias da piedade das passadas eras, para a medo, e, saudando-as à pressa, segue logo avante, para não ser vitima das exalações malignas que tornam o lugar assaz perigoso.

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